Misericórdia é um bom livro, Lídia Jorge é um grande exemplo
- Marcos Leite
- 16 de jun.
- 3 min de leitura
Quem diria, que no encerrar do primeiro quarto deste século, uma das mais lindas palavras da língua portuguesa estivesse tão em voga e, ao mesmo tempo, tão pouco praticada. Misericórdia é uma palavra de muitos aspetos. Guarda relação com o bem, no sentido de benevolência, assim como remete à ideia de perdão, bondade, entre outras aplicações.
Muito usada na religião, a palavra tem origem em dois termos latinos: miserere e cordis. O primeiro, que tem parentesco com o termo «miséria», significa sentir pena ou compadecer (padecer junto). Já o segundo, significa ter coração. Quando juntos, os termos significam a capacidade de ter compaixão, algo que parece estar tão distante do vocabulário dos líderes que insistem no conflito armado.
E por falar em misericórdia, no último «Dia de Portugal», celebrado em 10 de junho passado, um discurso impactante roubou a cena nas festividades. Foi quando a escritora Lídia Jorge lembrou que há tempos Portugal formou em seu povo, uma mistura portuguesa e africana. Em sua fala, a escritora lembrou que no século XVII, dez por cento da população tinha origem africana e, na sequência, emendou: “esta população (imigrantes) não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui e nos miscigenamos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade.
Cada um de nós é uma soma. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado, mistura daquele que punia até a morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.”
“Tudo existe e tudo passa: se não for escrito, não há eternidade.”
A frase acima, também foi dita por Lídia Jorge, quando em 2022 lançou o seu último livro, que curiosamente se chama Misericórdia. Nascida no Algarve, no início do pós-guerra, Lídia Jorge estudou Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em seguida, trabalhou como professora em Angola e Moçambique. Viveu de perto os últimos anos da guerra colonial, o que certamente aguçou sua sensibilidade como escritora.
Seu primeiro livro, «O dia dos prodígios», foi publicado em 1979. De caráter biográfico, Misericórdia é seu décimo-segundo romance, uma obra em que a autora veste a personagem de sua mãe. A inspiração veio quando se encontraram pela última vez, a oito de março de 2020 (Dia Internacional da Mulher). Na ocasião, Lídia recebeu da mãe um pedido para que escrevesse um livro com o título Misericórdia. Como último desejo de vida, a mãe queria que as pessoas tivessem mais compaixão umas com as outras.
Ao final daquela que seria a última conversa entre as duas, a mãe disse: “nunca mais te vejo”. Naquele momento, Lídia Jorge não compreendeu as palavras da mãe, que veio a falecer alguns dias depois. A escritora enfatiza que as últimas palavras de uma pessoa têm um eco fantástico na alma de quem as ouve. E foi por esta razão que aceitou o pedido materno e escreveu Misericórdia.
Escrever um livro onde a personagem é própria mãe trouxe à escritora um misto de sentimentos, como o pudor e o medo causado pela exposição. Depois de muito pensar, percebeu a necessidade de balancear a personalidade da mãe para poder contar toda aquela experiência e testemunho. Vencido o luto e estimulada por amigos, o romance híbrido – como a autora define - foi ganhando forma, até que ficou pronto.
A obra traz temas interessantes para reflexão. Um deles, é quando os pais, de certa forma, voltam a exercer o papel de filhos, diante da finitude. Outro tema, leva-nos a refletir sobre as projeções, que ao longo da vida os pais transferem a seus filhos e que nem sempre veem-nas concretizar. Lídia Jorge entende que o amor está presente até mesmo quando os pais tentam impor comportamentos e caminhos aos filhos.
A escritora vê como inevitável a «boa» mistura entre a vida da autora e da personagem, que neste caso é sua mãe. Fala de seu exemplo enquanto filha, ao considerar não ter seguido uma «carreira», como a mãe tanto desejava. Lídia diz ter seguido um «caminho», o que muitas vezes era interpretado como uma espécie de ofensa.
Se Misericórdia é um bom livro, Lídia Jorge é um grande exemplo. Mulher de fibra, em seu tempo e trajetória provou que a sensibilidade feminina é capaz de vencer obstáculos e gerar prosperidade quando se tem um propósito a cumprir, naquilo que ela define como «o caminho». Que venham tempos mais misericordiosos!
Marcos Leite, cronista

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