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Milton Nascimento e a música como encontro

  • Foto do escritor: Thais Marçon
    Thais Marçon
  • 15 de mar.
  • 4 min de leitura

Houve um momento neste Carnaval, no Rio de Janeiro, em que a Marquês de Sapucaí inteira prendeu a respiração. A Portela desfilava seu enredo para 2025, "Cantar Será Buscar o Caminho que Vai Dar no Sol", e, no último carro da escola, lá estava ele, o homenageado.


Milton.


Bituca.


De boina, silencioso, seu olhar carregando tudo o que já viu e tudo o que nunca precisou dizer. Um olhar que parece conter todas as respostas do mundo – ou, talvez, que saiba que não há resposta alguma.


E ali, diante de um sambódromo que o aplaudia em pé, ficou claro o que sempre foi evidente: Milton Nascimento não é apenas um dos maiores nomes da música brasileira. Ele é um monumento afetivo.


Porque não há como falar de Milton sem falar de emoção.


Ele não canta. Ele invoca. Sua voz é líquida, corre sem esforço, se espalha pelo espaço. Caetano Veloso disse que era a voz mais plácida do mundo. Elis Regina disse que era a voz de Deus, se Deus tivesse voz. Wayne Shorter chamou sua música de "um portal para algo maior".


Mas Milton nunca foi apenas um intérprete excepcional. Sua força está também no que escreve, no que compõe e no que pressente. Ele atravessou o Tropicalismo sem precisar de rótulo, porque sua música já era tão sua e tão nossa. Misturou o Brasil profundo e o jazz mais sofisticado, ritmos africanos, música andina, tudo com a naturalidade de quem apenas é.


E aí veio Clube da Esquina, em 1972.


Um disco que não pertence a tempo algum. O Brasil tentando sobreviver a um país que não sabia direito para onde ia, e Milton, Lô Borges, Beto Guedes e Wagner Tiso, criando uma tapeçaria de sonhos. Um álbum que soa como a trilha sonora de uma utopia que deu errado, mas que a gente insiste em acreditar. Uma mistura que falava de infância, de saudade, de luta. Um Brasil melancólico e solar ao mesmo tempo.


Mas este texto não é sobre isso.


Nem sobre a triste cena do último Grammy, onde Bituca concorria e foi separado de sua colega Esperanza Spalding na plateia, como se um senhor de 81 anos pudesse ser tratado como um figurante da própria homenagem. (Aqui caberia uma reflexão sobre a hierarquização entre as artes do Norte e do Sul global, mas fica para outro dia, porque hoje eu só quero falar de encontros.)


Também não é sobre o documentário sobre sua vida, que estreia agora em março e que esta que vos escreve está doida para ver.


Este texto é sobre algo menor – ou não.


Sobre uma música.


Sobre "River Phoenix (Carta a um Jovem Ator)", a primeira canção do disco Miltons.

Uma música que prova que o acaso pode ter planos. Que encontros improváveis às vezes parecem premeditados. Que a vida, quando quer, se escreve sozinha.


A história é essa:


Milton estava num hotel em Nova York. Ligou a TV sem pressa.


E viu um rosto.


Os olhos de River Phoenix disseram tudo o que o roteiro não precisava dizer.


E Milton sentiu algo. O quê, exatamente? Não sei. Talvez um reconhecimento.


Aquilo precisava virar canção.


" Se um dia a gente se encontrare eu confessarque vi um filme tantas vezespara desvendar os olhos teusE se a gente se falarcontar as coisas que viveu (…)”


Até aqui, apenas um instante que virou música.


Mas quando decidiu gravá-la, veio a burocracia: precisava de autorização para usar o nome de River. Quincy Jones fez a ponte, a mãe do ator ouviu a história e então…


O acaso, quando quer, escreve com precisão e lirismo.


Porque anos antes, River tinha descoberto Milton no mesmo hotel. No mesmo hotel.


River estava lá, ouvindo o rádio, quando uma música de Milton tocou e o atravessou. Ficou quieto. Ficou perplexo.


Depois, saiu do quarto e comprou todos os discos que encontrou.


Tempos depois, os dois criaram uma relação de amizade. Milton fala de River com ternura, e é bonito de ouvir.


E quando penso nessa história, mais do que em música, penso em como almas afins acabam por se encontrar de alguma maneira. Almas (no sentido menos religioso possível da palavra) que se sentem impactadas pelas mesmas coisas. Que compartilham uma espécie de sinergia etérea – valores partilhados, sentimentos e sonhos comuns. Uma coisa quase intuitiva, que não requer explicação.


Força do acaso? Física? Fado?


Não sei.


Só sei que encontros que transcendem o lugar comum são raros – ainda que sejam tão orgânicos quanto o fluxo de um rio. E ficam ainda mais raros com o tempo – esse senhor inexorável que, se não tivermos olhos atentos e peito aberto, nos ensina a duvidar da beleza das coisas.


Por isso, penso que se sentir genuinamente tocado por outro ser humano, seja ele quem for, seja o tipo de afeto que for, é mesmo um privilégio prazeroso e potente.


O mínimo é reconhecer o milagre.


Um viva aos bravos corações, doidos e doídos, que permitem a conexão.


Um viva aos encontros.


Um viva à música.


Um viva ao Milton, que junta tudo isso.

 

Thais Marçon é historiadora e ativista social



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