Ainda é preciso lutar: notas sobre uma marcha no Interior
- Thais Marçon
- há 4 dias
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As marchas LGBTQIAP+ não começaram ontem — embora ainda incomodem a alguns como se fossem novidade. Em 1969, em Nova Iorque, a violenta intervenção policial numa casa noturna, o Stonewall Inn, eclodiu numa justa reação por parte da comunidade — liderada por quem antes nunca tinha podido liderar: pessoas queer, trans, racializadas e sistematicamente marginalizadas — que transformaram repressão em voz. Foi um momento emblemático, a partir do qual nasceram as marchas que hoje conhecemos. Marchar sempre foi mais do que caminhar: é um gesto político, cultural, existencial. Do Bronx a Beira, cada marcha é, ao mesmo tempo, celebração que resiste e resistência que celebra.
A 4.ª Marcha pelos Direitos LGBTQIAP+ da Covilhã, organizada pelo Coletivo Covilhã a Marchar, no último 24 de maio, foi isso: um ato cultural profundamente político. Não apenas no plano simbólico ou festivo — que é parte fundamental da luta — mas também como uma ocupação concreta do espaço público por aquilo que muitos ainda preferem manter no armário empoeirado ou relegar ao privado: a afirmação plena de existir. E, no interior de um Portugal mais profundo, onde a exclusão nem sempre grita, insinuando-se no silêncio, esse gesto fala mais alto que mil comunicados oficiais — e incomoda muito mais também.
A marcha ocorreu uma semana após as eleições legislativas que, embora não tenham conferido a vitória à extrema-direita, revelaram seu crescimento mais significativo. Esse avanço não pode ser reduzido a mero dado eleitoral; representa, antes, um indicativo profundo dos tempos que atravessamos, marcado pela crescente erosão da convivência democrática que sustenta o espaço público. O simbolismo desse momento não é menor. Enquanto uns ensaiam retrocessos ao som da moral e do medo, a marcha respondeu com presença, diálogo, alegria, liberdade e futuro — e fê-lo sem meias palavras.
O coletivo Covilhã a Marchar não se esgota na identidade. Atua com base num compromisso comunitário que vai além do calendário simbólico. A sua ação nasce do trabalho voluntário de jovens — e de alguns menos jovens, é verdade — que, nos últimos quatro anos, construíram muito mais do que uma marcha. Promoveram ações sobre habitação, saúde, cultura, educação e direitos sociais. O manifesto deste ano, lido em praça pública, é uma cartografia concreta das urgências contemporâneas: exige a execução de políticas públicas já aprovadas, denuncia a negligência institucional e conecta e alia a luta LGBTQIAP+ a diversas pautas sociais igualmente urgentes — justiça climática, antirracismo, migração, entre outras. Lutar para além de si não é discurso vazio: é prática — e estes jovens a exercem. Esta juventude não é egoísta. Pelo contrário, é inclusiva na sua essência – diferente do que muitos dizem.
E talvez digam porque esta juventude ativa incomoda — especialmente quando é parte da sigla. Porque não se resigna ao cinismo nem à apatia. Porque prefere o trabalho paciente do reformismo ao sossego morno da indiferença — esse lugar onde nada dói, mas também nada muda. Porque insiste em desenhar caminhos possíveis onde antes só havia a aridez da incompreensão. É essa insistência lúcida que merece ser celebrada. E deve também ser reconhecido o compromisso dos jovens deste coletivo, que tanto trabalham e que, com os artistas e a comunidade, fizeram do 1.º Arraial da Diversidade um espaço concreto de encontro, arte e cuidado. “Foi bonita a festa, pá!”.
Mas, claro, houve reações. A costumeira tempestade em copo digital. O tom ofendido de quem confunde direitos com ameaça. E o resto — preconceitos gritados e uma crueldade que já nem tenta disfarçar-se de opinião. Mas a marcha aconteceu. Com corpos, com vozes, com pluralidade. E isso, no fim, é o que importa — e o que desestabiliza quem só se reconhece negando a existência do outro.
Mas o ódio dos que odeiam já não surpreende — repete-se, maquinal, como sintoma previsível de uma sociedade em tensão com a diferença. O que importa observar com atenção é o que se passa entre os que partilham os valores de Abril e que também defendem a democracia e a justiça social. É aí que se torna urgente enfrentar o risco do sectarismo. Num tempo em que os purismos se multiplicam e a competição simbólica substitui a ação transformadora, construir pontes deixou de ser metáfora e passou a ser condição de possibilidade. Como afirma o próprio coletivo, a transformação não virá do isolamento, mas da capacidade de articular lutas e territórios e de reconhecer a diferença sem a converter em fronteira. Talvez seja tempo de rever estratégias, abandonar o punitivismo elegante das ditas vanguardas e reencontrar a política como espaço comum de construção coletiva.
Porque marchar, afinal, é isso: construir sentido partilhado. É fazer política com o corpo e cultura com o gesto.
Coletividades como o Covilhã a Marchar não transformam tudo — e sabem disso. Mas têm poder de impacto. Porque mobilizam, organizam, sustentam lugares onde se experimenta, mesmo que por instantes, uma outra forma de estar juntos. É ativismo enraizado - feito de saber crítico, escuta ativa e prática colaborativa. Num tempo em que os discursos de ódio e anti-direitos ganham palco e legitimidade institucional, não basta resistir: é preciso propor. Criar linguagem. Criar espaço. Criar pertença. Criar comunidade.
Penso que é isso que estes jovens propõem. E eu, pessoalmente, alinho. Vamos, juntos, criar uma Covilhã com as cores do possível. E, se faltar tinta, a gente inventa — com a teimosia de quem não se contenta em apenas acreditar, mas escolhe seguir fazendo, em comum, o que ainda pode transformar.
P.S.: esta brazuca recomenda que escutem a música “E vamos à luta”, de Gonzaguinha, que, de maneira muito mais bonita e cheia de tropicalidade, expressa parte do que está aqui.
Thais Marçon, historiadora e activista social

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